Artista regrava hit ‘No Woman, No Cry’. Gil, aliás, converteu canção
para o português nos anos 70. Ouça nova versão aqui
Antídoto contra desumanidade, Gilberto
Gil espalha possibilidades existenciais. Não chores mais. Aos 82 anos, homem da
paz e do amor, Gil retorna ao reggae com nova versão para hit “No Woman, No
Cry”, eternizado por Bob Marley no disco “Natty Dread”, de 74. Dessa vez,
divide microfone com músico Stephen Marley, filho do rastaman das boas
vibrações.
“No Woman, No Cry” entra no streaming
como parte do projeto “Songs for Humanity”, previsto para ser lançado no
próximo dia 12. O álbum, editado pela fundação Playing For Change, reúne 30
artistas de diferentes nacionalidades, como Slash, Manu Chao, Santana e John
Paul Jones. A ideia, diz o produtor Mark Johnson, é espalhar mensagens de amor.
Segundo Mark, Bob reúne mundo afora fãs
ao redor da fogueira, em tentativa de se refletir sobre a canção “No Woman, No
Cry” e construir futuro em que tudo, tudo vai dar pé. Gil a gravou pela
primeira vez no elepê “Realce”, de 79. Sua parte, nessa nova versão, foi
registrada no Rio, onde tem casa, mas o produtor conta que começou projeto há
anos.
A nova releitura para a canção nasceu
em ruas italianas a partir de violão slide. Uma constelação de músicos está no
projeto, o que enfatiza vocação internacionalista dessa releitura, e se vê ali
instrumentistas sorridentes balançando seus corpos plurais e sendo guiados por
suingue orgânico, como se tocassem a música de suas vidas.
Para Gil, trata-se de comovente
homenagem ao legado construído por Marley, de quem o brasileiro se diz fã desde
que o ouviu nos anos 70. Ao jornalista estadunidense Andy Greene, da “Rolling
Stone”, o tropicalista diz que sua própria versão da música encontrou lar no
Brasil. “Reforçou seu poder como força de união e esperança entre pessoas”,
afirma.
Foi nos tempos de exílio londrino que o
cantor baiano ouviu música jamaicana pela primeira vez. Caminhava pela Porto
Bello Road escutando reggae, como em “Nine Out of Ten”, canção gravada por
Caetano Veloso no álbum “Transa”, de 72. Gil assistiu a manifestações da
cultura caribenha, da Jamaica e da América Central durante esses tempos
ingleses.
De volta ao Brasil, reencontrou o
reggae em São Luís (MA), reconhecida capital brasileira do estilo pela Lei
14.668. Em barraca praieira, identificou batida acentuada no segundo e quarto
tempos: Jimmy Cliff vocalizando “No Woman, No Cry”. Era mais lento que ska,
irmão próximo, e mais rápido que rock steady, ritmo caribenho com quem esse som
convivia bem.
No Woman, No Cry’ retratava o convívio diário de rastafaris no ‘government yard’ (área governamental) em Trenchtown, e a perseguição policial, provavelmente ligada à questão da droga (maconha)"
Lenda do reggae, Cliff fez nos anos 70 sua versão para o estrondoso hit
da banda The Wailers, surgida na Jamaica em 1962 para misturar ska com soul.
Logo depois, o tempo se desacelera — tal característica é atribuída à maconha.
Ali, como que pulsando a vida e estimulando corpo a se mexer, três instrumentos
constituem a base: guitarra, baixo e bateria.
Seja como for,
Gil viu semelhança entre contextos jamaicano e brasileiro. O reggae, expressão
de grupos que se situam à margem de Kingston, traz sonoridade comum aos povos
condicionados à faixa tropical do planeta. A partir da miscigenação entre
populações africanas e ameríndias, o estilo chega à forma com que se tornou
mundialmente conhecido.
Maconha
A discografia
gilbertineana recebe influência do reggae a partir de “Refavela”, cuja faixa
“Sandra”, de 77, foi composta após o artista ser preso com quantidade irrisória
de maconha, em Florianópolis, em 7 de julho de 76. Em juízo, Gil explicou que
erva lhe aguçava sensibilidade, o que não impediu sua transferência para
Instituto Psiquiátrico de São José.
Como canta na
faixa do suplício, naquela semana tomar chafé foi um vício e, em “Realce”, de
79, o reggae se revela presente no hit-democracia “Não Chores Mais”. A canção
oferece alento contra o apodrecido regime fardado, às vias de cair morto — ou
quase morto.
“Emblemática do
desejo de autonomia e originalidade das comunidades alternativas, ‘No Woman, No
Cry’ retratava o convívio diário de rastafaris no ‘government yard’ (área
governamental) em Trenchtown, e a perseguição policial, provavelmente ligada à
questão da droga (maconha), que eles sofriam”, contextualiza Gil, em texto
pinçado de seu site oficial.
Nos anos 80, Gil
estreitou parceria com o produtor Liminha. O primeiro elepê feito pela dupla,
“Luar”, de 81, não tem nenhum reggae. Já “Um Banda Um”, lançado em 82,
apresenta duas composições no estilo: “Esotérico” e “Drão”. “Extra”, faixa que
nomeia disco de 83, é pesada canção no ritmo jamaicano, coisa que se repete em
“Raça Humana”, de 84.
Em texto para
encarte de “Kaya n'Gan Daya”, Gil conta que desde o princípio encontrou
similitude entre cangaceiro e rastaman. “Para um artista, músico como eu, o
fato obviamente recairia sobre a música que se liga e se refere a ambos, o
cangaceiro e rastaman, e os associa direta ou indiretamente, a dois dos maiores
artistas da música popular do século que passou”, escreve, em obra na qual
revisita obra de Bob Marley, lançada em 2002.
Stephen Marley,
o filho de Bob, falou da honra que foi participar do projeto “Songs for
Humanity” com Gilberto Gil. “Meu pai e Gilberto foram amigos. O legado
continua”, disse à “Rolling Stone”. Como canta Gil em sua versão para “No
Woman, no Cry”: “Bem que eu me lembro, a gente sentado ali/Na grama do aterro
sob o sol/ Ob... observando hipócritas”.
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